Abertura do XIII Congresso do SMMP
A incomum fertilidade de significantes eventos recentes – geradora de turbilhões de comentários, interrogações e interpelações – confunde alguns, atordoa outros, acentua o ruído e propicia a desesperança.
Reportamo-nos essencialmente a importantes desenvolvimentos registados em inquéritos que, pela qualidade dos protagonistas e relevância pública das imputações indiciariamente feitas, ganharam incontornável expressão mediática, com consequências que extravasaram do território do judiciário, desencadeando ou avivando inflamadas paixões.
Assistimos à retoma de temas que ciclicamente surgem, acrescentados até ao paradoxo de outros nunca antes colocados que visam descredibilizar as investigações e quem as dirige.
Somos confrontados e fustigados pelo novel questionamento sobre a adequação dos meios empregues e sobre os timings das diligências e, noutra dimensão ainda, por conjeturas sobre a intencionalidade subjacente, situada fora do contexto processual, numa perigosa amálgama apresentada, quando não com foros de absoluta certeza, pelo menos com sibilinas alusões quase inevitavelmente atributivas de uma presunção de culpa à Procuradora-Geral da República e ao Ministério Público, reservando-lhes o papel de exclusivos ou principais responsáveis das páginas mais negras da realidade judiciária que hoje vivemos.
Fica toldada a serenidade e a clarividente abordagem dos grandes problemas que na realidade existem, que reconhecidamente vêm, há demasiado tempo, comprometendo a qualidade e a prontidão da Justiça e para os quais parece não se conseguirem conceber respostas válidas e, muito menos, adotá-las com prontidão.
Há algumas semanas, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça falava na criação de um ambiente propício a aventuras legislativas que podem comprometer a independência dos tribunais e o regular funcionamento do sistema de Justiça e sublinhava a importância de os sistemas judiciários evidenciarem solidez, eficiência e absoluta impermeabilidade a tentativas de ilegítima intrusão ou condicionamento por parte do poder político, perante os insofismáveis sinais de desgaste e deterioração das democracias, a degradação da ética, a normalização da mentira, a desresponsabilização dos dirigentes, a falta de integridade, o desvario comunicacional e a debilitação das instituições.
Não poderíamos estar mais de acordo.
Particularmente perante a ânsia de protagonismo de alguns, o passar de culpas, a mediatização das clivagens que não conhece tréguas – e tudo contamina, incluindo o espaço judiciário –, o desbaratar de opiniões carregadas de pré-juízos, falhas de aprofundamento e ponderada reflexão mas invariavelmente tingidas pelas cores comprometedoras do passado mais recente, já longo mas cujas marcas erosivas se avivam e se avolumam, causando desalento e desagrado e ameaçando fazer colapsar o serviço prestado ao cidadão.
Instalado o clima que, em apertada síntese, acima procurámos descrever, encontram-se, no que respeita ao Ministério Público, reforçadamente legitimados os aludidos receios, conforme aliás decorre da preocupante convergência opinativa a que se vem assistindo no que respeita à análise que incide sobre operações, diligências e outras realizações compreendidas na intervenção funcional do Ministério Público e para a qual, por vezes com estrondo, destacadas figuras, dentro e fora desta mesma magistratura, sem rebuço, vêm fazendo questão de dar também o seu contributo.
Caros Colegas,
O apelo que deixo a cada congressista é o de que a perseverança e a clarividência nunca deixe de ser por si laboriosamente perseguida.
A Justiça demanda crescente reforço de meios, modernização e reafirmação, seja pela sua maior prontidão, seja pela substância dos resultados alcançados.
Importa, não obstante as investidas e os ataques, que o Ministério Público zele, no escrupuloso respeito da Constituição e da lei, pelo cumprimento das suas atribuições, imune, ontem como hoje e também no futuro, a quaisquer pressões ou ingerências, diretas ou indiretas, num renovado compromisso assumido com empenho e rigor e em que a única e revigorante gratificação, diária e incessantemente perseguida, seja a do dever cumprido.
Essa foi exclusivamente – repetimos, exclusivamente –, desde o início do nosso mandato, a inamovível trave-mestra que presidiu às posições que assumimos e às decisões tomadas, mesmo que muitas vezes fazendo germinar sentimentos adversos, alguns altamente tóxicos e até odiosos.
Acalentamos a esperança de que muitos já o consigam hoje reconhecer.
É esse sentimento de dever cumprido que levamos guardado connosco, sem dele nunca abdicarmos.
Nem julgamos que o Ministério Público, atentas as suas competências e atribuições, possa, em circunstância alguma, alguma vez fazê-lo.
A magistratura do Ministério Público deve concentrar-se na força aglutinadora que detém, mantendo o foco nas suas virtualidades e não protagonizando nem consentindo desvios que a enfraqueçam ou desvirtuem.
Dessa força é expressão o elevado número de inscritos neste Congresso, a potenciar esclarecedores debates de ideias e trocas de experiências, com total abertura e lucidez.
Os contributos neste contexto reunidos constituem um manifesto cuja valia não deixará de ser encarada atentamente numa dimensão construtiva de melhoria do sistema, contribuindo efetivamente para uma sociedade mais justa, em benefício dos cidadãos que a integram e reparando a confiança na Justiça.
A presença da Procuradora-Geral da República neste evento representa um claro sinal de proximidade e de solidariedade para com os magistrados e de esperançosa aposta num auspicioso futuro para o Ministério Público e para a Justiça.
Representa também a certeza de que juntos conseguimos fazer e fazemos melhor, com irrepreensível e permanente denodo e abnegação, relativizando as nossas pequenas certezas, em detrimento de uma verdade maior – a de que é na adequação da nossa postura e na qualidade do nosso exercício funcional, na isenção das posições assumidas e na inspiradora confiança que incutimos que ajudamos a construir o edifício da Justiça cujos alicerces alguns pretendem ver fragilizados.
Um dos desalentos maiores que connosco transportaremos no final do mandato é porém o de que, tendo presentes as particulares atribuições do Ministério Público, especialmente no domínio penal, e a incontornável necessidade de afetação de recursos materiais e humanos vitais para a prossecução daquelas, cada vez de maior dimensão e complexidade, pecarão crescentemente por inexpressivos os avanços de que nos poderemos vangloriar, caso permaneça por reconhecer a essencialidade da consagração da autonomia financeira do Ministério Público.
Torna-se cada vez mais flagrante, com efeito, que só ela proporcionará a afetação de recursos necessários ao eficaz combate à criminalidade, particularmente a mais grave, a mais censurável e violenta.
Só a autonomia financeira permitirá também garantir a efetiva autonomia do Ministério Público relativamente aos demais poderes do Estado.
Para usar uma expressão já antes por nós utilizada, a mera enunciação asséptica de um dever- ser tenderá a falhar, na substância, pela faculdade de condicionamento, ou mesmo de asfixia, que o largo campo de intervenção do poder executivo sobre o Ministério Público efetivamente contempla.
Numa outra dimensão e repetindo ideia também já antes expressa, urge promover convergências de entendimento identificadoras dos principais diplomas ou segmentos legislativos carecidos de inadiável reformulação, em particular no domínio da organização judiciária e do direito penal e processual penal.
Independentemente das razões subjacentes e da atribuição de maior ou menor percentagem de responsabilidades no resultado alcançado, só em concreto autorizada por uma séria e isenta análise retrospetiva, a verdade cristalina é a de que não serve a Justiça, nem nenhum dos concretos protagonistas dos casos investigados, a existência de processos penais pendentes, sem decisão final consolidada, ao longo de extensos períodos temporais que chegam a perdurar mais de uma década.
Concluo.
Aquando da realização do próximo Congresso, o Ministério Público contará com um novo Procurador-Geral da República e por isso é tempo de hoje, neste fórum, dirigir a todos os magistrados presentes uma palavra de alento e de confiança num futuro de menor confronto e de maior respeito e dignificação da Justiça, mediante o reconhecimento da centralidade da missão constitucional e legalmente atribuída ao Ministério Público e da valia do modelo refletido na arquitetura do sistema.
Mas tal não invalida nem dispensa a necessidade de auto-reflexivamente o Ministério Público conseguir identificar os constrangimentos que limitam e condicionam, em maior ou menor grau, o seu funcionamento, tentando ultrapassá-los, consoante os casos, por via de mecanismos ou ajustes internos, ou propondo a sua superação, por via de alterações legislativas que entenda benéfico introduzir.
Trata-se de fazer prevalecer uma postura proactiva, construtiva e colaborativa, em linha com a vocação originária desta magistratura pela qual sempre temos procurado pautar o exercício do cargo em que estamos investidos.
Queremos acreditar que o futuro não deixará de continuar a reconhecer a bondade do modelo constitucional e legal consagrado no qual o Ministério Público assume um papel de inquestionável relevância e centralidade, permitindo o seu robustecimento e pontuais ajustes com ganhos de eficácia e prontidão na realização da Justiça pelos quais estamos certos que percentagem significativa da comunidade em que nos inscrevemos anseia.
Bem-hajam pela atenção dispensada.
A todos deixo o voto de um excelente Congresso.
Ponta Delgada, 29 de Fevereiro de 2024